Inquietações trazidas de Helsínquia

 by Prof. Catarina Martins


Conhecemos um bocadinho mais do mundo quando nos aproximamos de formas diferentes de o pensar, de o organizar. Afinal, são parte do mundo, as ideias que dele construímos, como o afetamos e nos deixamos afetar por tudo o que nele existe.

Por isso, a viagem pelo modelo de ensino finlandês começou ainda por cá, enquanto a curiosidade se foi aguçando e a vontade crescendo - que conhecer há de ser sempre um exercício de vontade.

Partilho, não um resumo, mas uma espécie de seleção natural das memórias, com uma camada de “como as penso e sinto”.

Helsínquia recebeu-nos, ao abrigo do programa Erasmus+, entre os dias 12 e 17 de fevereiro. Fui na boa companhia dos colegas Isabel Valente, Mário Silva e Nuno Resende. E falar da experiência sem referir as temperaturas que se foram sentindo como demasiado negativas, seria omitir uma parte importante daqueles dias. E das aprendizagens também. Porque, no fundo, o frio, a neve, o gelo, são como uma espécie de património genético do lugar, com o qual as pessoas vivem necessariamente e, o mais surpreendente, sem deixar que se imponham como condicionantes. Dizem, também por isso, que faz parte do caráter dos finlandeses “SISU” – a palavra que parece não poder ser traduzida, mas que envolve a ideia de coragem, uma capacidade especial de não desistir quando confrontados com as adversidades, uma força especial que leva à ação, mesmo quando tudo é difícil. Fico sempre com vontade de dizer que significa resiliência, mas suspeito que me acusariam de estar a ser simplista.

Foi uma experiência enriquecedora partilhar a formação com professores da França, Lituânia e Alemanha e, assim, contactar também com formas diferentes de pensar e fazer acontecer a educação.

Visitámos OMNIIA, as ilhas Suomenlinna e Seurasaari – esta última um verdadeiro museu a céu aberto, uma belíssima “não sala de aula”.

Também tivemos a oportunidade de explorar a biblioteca Oodi, uma espécie de biblioteca do futuro a acontecer agora, um lugar impressionante!

Entrar na biblioteca Oodi é querer ficar. As janelas rasgadas para a cidade convidam a parar, a ser sem esforço, a contemplar. Ao mesmo tempo, as crianças a brincar, a descobrir livremente os livros, dão vida a um espaço que nem por isso parece acanhar-se no querer servir quem procura o silêncio e a paz. Como se sossego e agitação não se anulassem. Não ali!

No mesmo edifício, um fascinante makerspace, mais um convite à comunidade, para pôr ideias em prática, para testar, para usar e partilhar – equipamentos como impressoras 3D, instrumentos musicais, máquinas de costura, máquinas de impressão em têxtil …, mas também espaços – de reunião, de formação, estúdios de gravação… enfim… Oodi é uma biblioteca, mas também é, certamente, um espaço para poder acontecer a vida social.

Trouxe, inevitavelmente, a inquietação: E nós? Aceitaríamos desafio semelhante, esse de usufruir, com o outro, do melhor para todos?

Já no que respeita ao modelo de ensino finlandês, e entre o muito que haveria para dizer, saliento aqueles que me pareceram ser os seus princípios basilares e, simultaneamente, principais objetivos.

A par da especialização que cada área do saber alberga, privilegia-se uma abordagem multidisciplinar e transdisciplinar, visíveis na abordagem STEAM e, como parte desta, a aprendizagem baseada em “fenómenos”. Centrado no aluno, o processo de aprendizagem quer-se significativo e promotor do desenvolvimento de competências sociais e de cidadania, direcionadas para a formação do cidadão, do sujeito ativo do futuro, mas também do presente. Por isso, educa-se desde os primeiros anos para a autonomia e para o trabalho em colaboração.

Pareceu-me muito interessante a importância que é dada, nas escolas, às relações, à vivência “com o outro”, ao trabalho “com o outro”, ao crescimento “com o outro”. Fica a sensação, quando visitamos lugares como a biblioteca Oodi, ou o makerspace de OMNIA, que esta aprendizagem do e no social, dá frutos e se consolida, ao longo das vidas adultas, pela forma como são pensados e vividos, tanto o trabalho, como o lazer.

Saliento, da “aprendizagem baseada em fenómenos”, o seu ponto de partida: um fenómeno do mundo, como eventos naturais, sociais, científicos ou culturais, que despertam a curiosidade dos alunos, são por estes explorados em profundidade, através de investigação, discussão e aplicação de conhecimentos de várias disciplinas. É o mundo real, a vida, a servirem de base para as inquietações dos estudantes, também elas reais. O pressuposto é o de que qualquer problema tem múltiplas abordagens (científica, social e políticas, artística, tecnológica, etc.) e que, juntas, possibilitam uma melhor compreensão do mundo e dos seus “fenómenos”. No fundo, são o mundo real e os interesses genuínos dos estudantes a traçar o caminho da aprendizagem, em vez desta se impor, alheada, daqueles. É, sem dúvida, uma abordagem que depende muito do envolvimento de professores e alunos, mas também de um verdadeiro espírito de união e partilha, já que é em equipa, em pequenos grupos, que se aprende e se constrói. Por isso, competências transversais como as sociais, aquelas ligadas à ética, ao meio ambiente, ao bem-estar, à própria criatividade ou interação, também fazem parte da avaliação dos diferentes momentos dos trabalhos. A avaliação é, na verdade, aqui entendida como processo e produto, já que os diferentes momentos de auto e heteroavaliação dos alunos os implica, obrigando à atenção ao outro, mas também à autoconsciência. Apesar de aliciante, a aprendizagem baseada em fenómenos representa também alguns desafios. Enquanto professora, tocou-me particularmente a necessidade de aceitar que, como consequência de um modelo que privilegia o processo e não o produto, este último poderá, muitas vezes, não ser revelador da riqueza de todo o processo e, menos ainda, das expectativas do professor. Exige, no fundo, um exercício de “descentração” e “deslocação”. Fiquei a pensar como são difíceis os desafios que beliscam o nosso ego…

Os pressupostos da pedagogia positiva também têm aqui um lugar de destaque, assumindo como objetivo a construção de caráter e bem-estar das crianças e jovens. Tendo como base as forças de cada um – as mais evidentes, mas também as mais escondidas – pretende-se potenciá-las. Nesse contexto, o professor atua como um modelo, demonstrando gentileza e evitando julgamentos. Utiliza e encoraja o uso de uma "linguagem das forças", focado em destacar as habilidades e pontos positivos dos alunos, enquanto ensina sobre a sua importância e impacto nas interações sociais, na construção da autoconfiança e das próprias aprendizagens.

Achei particularmente interessante esta forma de entender a linguagem. É que as palavras nunca são “apenas palavras”. São símbolos e lentes que nos alertam para dimensões da realidade que, sem elas, não conseguiríamos ver. Por isso, aprender a falar sobre bondade, compaixão, justiça ou empatia, é aprender a reconhecê-las – no mundo, no outro, em mim. O “currículo positivo” surge, assim, como mais uma ferramenta de autoconhecimento e, julgo, autorregulação: uma espécie de visão 360º de mim, a partir dos “olhos positivos” de quem me rodeia.

Não sei se é bem possível distinguir sempre a causa do efeito. Mas parece haver uma inegável relação entre a forma como se educa e se vive. Os finlandeses valorizam muito o contacto com a natureza e a sauna, por exemplo, nas suas vidas quotidianas. E isto porque valorizam e buscam o bem-estar.  Esse que é tão cultivado na e pela educação…

Se aprendi a fórmula para a felicidade? Para a aprender e ensinar? Não. Mas trouxe inquietações novas. E ideias também: de como continuar a procurá-la e de como tentar ajudar a construí-la!


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